Escutatória
Ou o silêncio como alimento
Rubem Alves
Sempre vejo anunciados cursos de oratória. Nunca vi anunciado curso de escutatória. Todo mundo quer aprender a falar. Ninguém quer aprender a ouvir. Pensei em oferecer um curso de escutatória. Mas acho que ninguém vai se matricular.
Parafraseio Alberto
Caeiro: "Não é bastante ter ouvidos para se ouvir o que é dito. É preciso
também que haja silêncio dentro da alma". Não aguentamos ouvir o que
o outro diz sem logo dar um palpite melhor: "Se eu fosse você..."
Como se aquilo que ele diz não fosse digno de descansada consideração e
precisasse ser complementado por aquilo que a gente tem a dizer, que é
muito melhor. Certo estava Lichtenberg - citado por Murilo Mendes: "Há
quem não ouça até que lhe cortem as orelhas".
Tenho um velho amigo,
Jovelino, que se mudou para os Estados Unidos. Foi trabalhar num programa
social com os índios. Contou-me sua experiência. As reuniões são estranhas.
Reunidos os participantes, ninguém fala. Há um longo, longo silêncio. Todos à
espera do pensamento essencial. Aí, de repente, alguém fala. Curto. Todos
ouvem. Terminada a fala, novo silêncio. Falar logo em seguida seria um grande
desrespeito. Pois o outro falou os seus pensamentos, que julgava
essenciais. Sendo dele, os pensamentos não são meus. São-me estranhos.
Comida que é preciso digerir. Digerir leva tempo. É preciso tempo para entender
o que o outro falou. O longo silêncio quer dizer: "Estou ponderando
cuidadosamente tudo aquilo que você falou." E assim vai a reunião.
Há grupos religiosos
cuja liturgia consiste de silêncio. Faz alguns anos, passei uma semana num
mosteiro na Suíça. Eu e algumas outras pessoas ali estávamos para, juntos,
escrever um livro. Era uma antiga fazenda. Velhas construções, não me esqueço
da água no chafariz aonde as pombas vinham beber. Havia uma disciplina de
silêncio, não total, mas de uma fala mínima. O que me deu enorme prazer às
refeições. Não tinha a obrigação de manter uma conversa com meus vizinhos de
mesa. Podia comer pensando na comida. Também para comer é preciso não ter
filosofia. Não ter obrigação de falar é uma felicidade. Mas logo fui informado
que parte da disciplina do mosteiro era participar da liturgia três vezes por
dia: às 7 da manhã, ao meio-dia e às 6 da tarde. Estremeci de medo. Mas
obedeci. O lugar sagrado era um velho celeiro, todo de madeira, teto muito
alto. Escuro. Haviam aberto buracos na madeira, ali colocando vidros de
várias cores. Era uma atmosfera de luz mortiça, iluminada por algumas
velas sobre o altar, uma mesa simples com um ícone oriental de Cristo. Uns
poucos bancos arranjados em "U" definiam um espaço vazio onde quem
quisesse podia sentar numa almofada. Cheguei alguns minutos antes da hora
marcada. Era um grande silêncio. Muito frio, nuvens escuras cobriam o céu
e corriam, levadas por um vento impetuoso que descia dos Alpes. A força do
vento era tanta que o velho celeiro torcia e rangia, como se fosse um navio de
madeira num mar agitado. O vento batia nas macieiras nuas do pomar e o barulho
era como o de ondas que se quebram. Estranhei. Os suíços são sempre pontuais. A
liturgia não começava. E ninguém tomava providências. Todos continuavam do
mesmo jeito, sem nada fazer. Cinco minutos, dez, quinze. Só depois de vinte
minutos é que eu, estúpido, percebi que tudo já se iniciara vinte minutos
antes. As pessoas estavam lá para se alimentar de silêncio. E comecei a me
alimentar de silêncio também...
Rubem Alves Educador e escritor
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