Por que podemos dizer que o teatro vicentino é em grande parte alegórico?
Primeiro, é necessário saber o significado de tal expressão: teatro Alegórico corresponde à representação de uma ideia abstrata ou um tipo social, por meio de uma personagem. Assim, de forma burlesca, cômica, em o Auto da barca do inferno, o bem é representado pelo Anjo e o mal pelo Diabo e seu barqueiro. Aliás, na mitologia grega, era o Caronte quem conduzia as almas para o outro lado do rio da morte, desde que elas lhe pagassem duas moedas.
A peça traz à tona a situação de iminência do fim do mundo “Juízo Final”, em que os anjos virão separar os “maus” do meio dos “justos”.
Encenada pela primeira vez para a rainha D. Maria, em 1517, a peça começa no ponto em que as almas chegam a um profundo braço de mar, onde estão dois batéis (barcos): um deles com destino ao Céu, e o outro com viagem prevista ao Inferno.
As barcas aguardam as almas que acabaram de morrer para, então, conduzirem-nas ao Céu, caso tenham praticado boas ações em vida, ou para o Inferno, se suas ações forem consideradas errôneas.
As personagens representam tipos sociais da sociedade portuguesa da época. Cada qual traz consigo os objetos que simbolizam suas ações: boas ou más:
Diabo: é o capitão da barca do inferno, portanto é quem apressa o embarque dos condenados. Ele é dissimulado e irônico.
Anjo: é o capitão da barca do céu. Ele elogia a morte pela fé, é austero e inflexível.
- Fidalgo: representa a nobreza exploratória e arrogante. Seus símbolos: uma cadeira, simbolizando luxo e poder, pois era costume os fidalgos serem acompanhados por um empregado que levava uma cadeira, para o caso de eles quererem se sentar. Além disso, o Fidalgo também carrega consigo um manto, representando a vaidade e a classe social a que pertence.
- Onzeneiro: idolatra o dinheiro, é agiota e usurário; de tudo que juntara, nada leva para a morte, ou melhor, leva a bolsa vazia.
Trata-se de pessoa avarenta, ambiciosa, agiota, aquele que empresta dinheiro a juros. A palavra deriva de “onzena”, que significa juros de onze por cento. Símbolo: uma bolsa grande usada para transportar dinheiro.
- Parvo, Joane (forma antiga de João): representa o tolo, bobo. A ele são confiadas verdades que outros não dizem. Sua simplicidade faz com que ele represente certa sabedoria popular. Por outro lado, ele representa o povo português, rude e ignorante, porém bom de coração e temente a Deus.
- Sapateiro: os artesãos que correspondem aos comerciantes atuais. Símbolo: avental, formas e suas ferramentas do ofício (couro para fabricação de sapatos).
- Frade: representa os maus sacerdotes e é subjugado por suas fraquezas: mulher e esporte. Símbolos: a amante, representando a quebra dos votos de castidade e as armas de esgrima: um broquel (escudo), uma espada e um capacete. Esses objetos denunciam a falsidade praticada na vida religiosa, assim como a vida mundana, isto é, a busca por prazeres materiais.
- Florença: amante do Frade.
- Brísida Vaz: alcoviteira: representa a degradação social, a prostituição, cafetina, feitiçaria. Símbolos: “seiscentos virgos (hímen, virgindade da mulher) postiços”“Três arcas de feitiços”“Três almários de mentir”“Cinco cofres de enlheos”“jóias de vestir”“Guarda-roupa”“Alguns furtos alheios”“Casa movediça”“Estrado de Cortiça”
- Judeu: representa os infiéis que são alheios à fé cristã. Símbolo: um bode às costas, significando parte dos rituais de sacrifício da religião hebraica e desrespeito à abstinência e o jejum cristão (o Judeu comia carne em dia de jejum). “Durante o reinado de dom Manuel, de 1495-1521, muitos judeus foram expulsos de Portugal, e os que ficaram, tiveram que se converter ao cristianismo, sendo perseguidos e chamados de "cristãos novos". Ou seja, Gil Vicente segue, nesta obra, o espírito da época”.
- Corregedor: juiz de direito cuja função cabe corrigir os erros ou abusos das autoridades e funcionários da justiça. Símbolos: feitos, processos e uma vara, insígnia da justiça.
- Procurador: advogado do Estado. Simboliza a magistratura corrupta e encarna a burocracia jurídica da época. Símbolos: livros.
- Enforcado: é o símbolo da falta de fé e da perdição. Símbolo: corda.
- Quatro cavaleiros: representam as cruzadas contra os mouros e a força da fé católica. Símbolos: Cruz de Cristo.
Auto é uma composição dramática medieval com argumento em geral bíblico ou alegórico.
O "Auto da Barca do Inferno" faz parte de uma trilogia: “Auto da Barca da Glória”, Auto da Barca do Inferno" e "Auto da Barca do Purgatório".Publicado em 1517, “Auto da Barca do Inferno” foi escrito em versos de sete sílabas poéticas, possui apenas um ato, dividido em várias cenas. A linguagem utilizada pelos personagens varia, desde a coloquial até a erudita forense. É somente por meio das falas que podemos classificar a condição social de cada um dos personagens.
O moralismo vicentino localiza os vícios, não nas instituições, mas nos indivíduos que as fazem viciosas. Preso aos valores cristãos, Gil Vicente tem como objetivo alcançar a consciência do homem, lembrando-lhe que tem uma alma para salvar.
Inserido no Humanismo, o dramaturgo mantém forte ligação com os valores medievais, sobretudo os cristãos. Dessa forma, busca a moralização do homem para que este encontre a salvação de sua alma.
Bibliografia:
SARAIVA, António José. História da Literatura Portuguesa. Lisboa: Porto.