Ninguém: 
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Que andas
  tu aí buscando? 
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Notas de tradução 
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Todo o Mundo: 
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Mil
  cousas ando a buscar: 
delas não posso achar, porém ando porfiando por quão bom é porfiar.  | 
  
Porfiando:
  insistindo, teimando. 
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Ninguém: 
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Como hás
  nome, cavaleiro? 
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O
  verbo haver nestes versos tem o sentido de ter. 
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Todo o Mundo: 
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Eu hei
  nome Todo o Mundo 
e meu tempo todo inteiro sempre é buscar dinheiro e sempre nisto me fundo.  | 
  
E
  sempre nisto me fundo: e sempre me baseio neste princípio, nesta idéia. 
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Ninguém: 
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Eu hei
  nome Ninguém,  
e busco a consciência.  | 
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Belzebu: 
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Esta é
  boa experiência: 
Dinato, escreve isto bem.  | 
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Dinato: 
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Que
  escreverei, companheiro? 
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Belzebu: 
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Que
  ninguém busca consciência.  
e todo o mundo dinheiro.  | 
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Ninguém: 
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E agora
  que buscas lá? 
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Todo o Mundo: 
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Busco
  honra muito grande. 
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Ninguém: 
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E eu
  virtude, que Deus mande 
que tope com ela já.  | 
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Belzebu: 
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Outra adição nos acude: 
escreve logo aí, a fundo, que busca honra todo o mundo e ninguém busca virtude.  | 
  
Adição:
  acrescentamento. 
Acude: ocorre.  | 
 
Ninguém: 
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Buscas
  outro mor bem qu'esse? 
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A
  palavra mor, muito pouco empregada atualmente, é uma forma abreviada de
  maior. Poderíamos dizer, pois: 
buscas outro maior bem...  | 
 
Todo o Mundo: 
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Busco
  mais quem me louvasse 
tudo quanto eu fizesse.  | 
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Ninguém: 
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E eu quem
  me repreendesse  
em cada cousa que errasse.  | 
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Belzebu: 
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Escreve
  mais. 
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Dinato: 
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Que tens
  sabido? 
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Belzebu: 
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Que quer
  em extremo grado 
todo o mundo ser louvado, e ninguém ser repreendido.  | 
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Ninguém: 
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Buscas
  mais, amigo meu? 
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Todo o Mundo: 
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Busco a
  vida a quem ma dê. 
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Ma:
  me+a. Contração dos pronomes pessoais oblíquos, objeto indireto e direto,
  respectivamente. 
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Ninguém: 
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A vida
  não sei que é,  
a morte conheço eu.  | 
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Belzebu: 
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Escreve
  lá outra sorte. 
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Dinato: 
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Que
  sorte? 
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Belzebu: 
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Muito garrida: 
Todo o mundo busca a vida e ninguém conhece a morte.  | 
  
Garrida:
  engraçada. 
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Todo o Mundo: 
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E mais
  queria o paraíso,  
sem mo ninguém estorvar.  | 
  
Mo:
  me+o. Contração do pronome objeto indireto me com o pronome demonstrativo
  objeto direto o. Entenda-se no texto: sem ninguém estorvar isto a mim.  
Estorvar: atrapalhar.  | 
 
Ninguém: 
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E eu ponho-me a pagar 
quanto devo para isso.  | 
  
Ponho:
  entenda-se: proponho. 
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Belzebu: 
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Escreve
  com muito aviso. 
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Dinato: 
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Que
  escreverei? 
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Belzebu: 
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Escreve 
que todo o mundo quer paraíso e ninguém paga o que deve.  | 
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Todo o Mundo: 
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Folgo muito d'enganar,  
e mentir nasceu comigo.  | 
  
Folgo:
  tenho prazer, gosto. 
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Ninguém: 
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Eu sempre
  verdade digo 
sem nunca me desviar.  | 
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Belzebu: 
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Ora
  escreve lá, compadre, 
não sejas tu preguiçoso.  | 
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Dinato: 
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Quê? 
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Belzebu: 
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Que todo
  o mundo é mentiroso,  
E ninguém diz a verdade.  | 
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Ninguém: 
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Que mais
  buscas? 
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Todo o Mundo: 
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Lisonjear. 
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Lisonjear:
  elogiar. 
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Ninguém: 
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Eu sou
  todo desengano. 
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Belzebu: 
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Escreve,
  ande lá, mano. 
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Dinato: 
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Que me
  mandas assentar? 
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Belzebu: 
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Põe aí mui declarado,  
não te fique no tinteiro: Todo o mundo é lisonjeiro, e ninguém desenganado.  | 
  
mui:
  forma reduzida de muito. 
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O autor
  deu o nome de Todo o Mundo e Ninguém às suas personagens principais desta
  cena. Pretendeu com isso fazer humor, caracterizando o rico mercador, cheio
  de ganância, vaidade, petulância, como se ele representasse a maioria das
  pessoas na terra (todo o mundo). E atribuindo ao pobre, virtuoso, modesto, o
  nome de Ninguém, para demonstrar que praticamente ninguém é assim no mundo. 
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| O autor: Gil Vicente Não se sabe, ao certo, a data do nascimento de Gil Vicente. Talvez 1452, 1465 ou 1470. Supõe-se tenha falecido em 1537. Trabalhava junto à corte, como mestre da balança (ou seja, diretor da Casa da Moeda). Em 1502, por ocasião do nascimento do príncipe D. João III, representou perante a rainha mãe, ainda acamada, a peça Auto da visitação (ou Monólogo do vaqueiro). Com ela iniciava o teatro em Portugal. Em sua biografia quase tudo são hipóteses, inclusive a cidade portuguesa que teria sido seu berço natal. Mas o importante mesmo é o valor de sua extensa obra teatral, com a qual pintou um painel crítico da sociedade portuguesa quinhentista, não lhe tendo escapado classe social alguma. Suas peças eram, em geral, representadas nos paços reais, com a corte presente. Os cenários e os recursos técnicos eram pobres, mas os temas engenhosos , as personagens decalcadas da realidade e a agilidade do diálogo, além do humor, fizeram do autor um dos mais significativos de toda a história da literatura portuguesa. Principais obras: Auto da Barca do Inferno, Auto da Barca do Purgatório e Auto da Barca da Glória (a chamada Trilogia das barcas), Auto da Índia, Farsa de Inês Pereira. Apesar da dificuldade que poderá ocorrer na leitura e representação de suas peças, por causa da linguagem antiga, vale a pena conhecer esse autêntico gênio do teatro português de todos os tempos.  | 
 
Fonte: "Aprendendo o Português...", Dino Preti,
Companhia Editora Nacional, São Paulo, 1977